terça-feira, 13 de abril de 2010

Um dia ruim



Começou assim, do nada: acordou, penteou os cabelos numa passada de pente rápida, lavou o rosto sem se olhar no espelho do banheiro e voltou ao quarto, onde uma calça, uma camisa e um paletó lhe cobriram o corpo. Os sapatos de sempre e o beijo de bom dia idem, denunciavam que nada de anormal estava acontecendo naquele início de dia comum. Até o momento em que ele perdera o ônibus das 6:15. Pronto: estava armada a tempestade.

Daí por diante tudo mais seria complicado, a anormalidade havia se instalado, numa sequência de acontecimentos desagradáveis. E pra início de conversa, caía uma garoa chata, logo hoje que ele deixara o guarda-chuva em casa. No ônibus lotado, notou o fio puxado no paletó de cassemira. Só podia ter sido aquele senhor no ponto de ônibus, ansioso pra pegar a vaga reservada aos idosos. Em pé, fez a viagem ouvindo um funk a toda altura, vindo dos fundos do lotação. Gente mais sem gosto! Colocou o fone no ouvido. Melhor ouvir as notícias de chuva e deslizamento.

Enfim, chegou à firma. A recepcionista não lhe dera o mesmo bom dia de sempre, parecia entediada, nada disposta a colaborar. Certamente a moça atrás da ligação telefônica também não. Não se tratava de implicância, mas de uma constatação! O dia, definitivamente não havia começado bem. Mas, suas palavras soaram firmes: quero falar com fulana. Porém, a sicrana do 4º andar não permitira, dissera que não havia ninguém para atendê-lo no momento. É isso mesmo, depois de tantos anos de dedicação à firma, eles simplesmente agora o desprezavam! Mas por que cargas d'água???

Esperou por duas horas. Indignado, disse que subiria assim mesmo. Afinal, tinha pedigree para isso. Decepção. Ninguém estava disposto a atender. Soltou os cachorros na primeira desinfeliz que encontrou e virou-se sem querer explicações. Enfim, a manhã estava perdida. Desceu, saiu disposto a fazer uma reclamação aos superiores. Deu de novo com a cara na porta. A moça sentada ao computador, sequer o atendera direito quando respondeu que o Sr. Fulano estaria fora o dia inteiro. O celular! Sim, tinha liberdade para tanto. Caixa Postal?! Só pode ser de propósito! Secretariazinha duma figa! Mas isso não fica assim. Depois do almoço os pingos seriam postos nos "is".

O elevador subiu e desceu várias vezes antes de chegar à portaria. Na garagem alguém entrou com um monte de pacotes, lhe tapando a visão dos números no painel. Passou novamente do térreo. "Isso aqui está passando da hora de ter uma ascensorista". Desceu as escadas do 2º andar até o desejado, saindo bufando pela porta principal. A camisa suada e as mãos frias, denunciavam a ansiedade do momento. Decidiu que o melhor seria almoçar por ali mesmo, pra ganhar tempo. Tinha muito a fazer hoje. Contas a pagar. Contas a receber. E ainda tinha um exame médico de rotina pra fazer.

No restaurante escolhido, entrou na fila do self-service. Finalmente um lugar de gente civilizada e de bem com a vida... não fosse o garçom atrapalhado, que ao passar lhe derrubou um copo de suco de manga na camisa branca. Esbravejou, xingou, chamou o gerente para fazer as reclamações de praxe. Não adiantaria um paninho com álcool e amaciante. Aquilo afinal era um absurdo! Acomodado numa mesa vip com direito a almoço de graça, sentiu-se um pouquinho melhor. Não que a comida estivesse à altura, já que a salada não era lá essas coisas e o bife muito pequeno. Pediu o sal emprestado na mesa vizinha. A menina, de uns cinco anos, resistiu em lhe entregar. A mãe, ocupada com o celular, nem aí para o embate pelo vidrinho de sal. Ofereceu duas batatinhas fritas em troca, mas a menina lhe mostrou a língua. "Malcriada!!!". Isso a mãe escutou e bem. "Como assim??? O senhor está xingando a minha filha??? Malcriado é o senhor, que não sabe lidar com uma garotinha de cinco anos!!! Seu gerente!!!".

Depois de quase ser expulso do recinto e processado por maustratos à menor, pagou um pirulito para a criança e, de camisa manchada e com fome, dirigiu-se ao ponto do ônibus. Não iria trabalhar mais hoje. Melhor seria ir pra casa, tomar um banho e ver TV.

A garoa voltou a cair e o ponto do ônibus não dispunha de guarita. Não havia sequer uma marquise por perto. Nem um poste tombado onde pudesse esconder-se. Cabelos pingando, pensamentos fogueando na cabeça dolorida, esperava tudo, menos aquele banho de enxurrada que um taxi acelerado lhe dera em seguida. Praguejou sobre o motorista, dizendo a ele tudo o que se diz ao juiz em dia de Cruzeiro X Atlético. Uma boa senhora, de sombrinha, bem que tentou ajudar: "o senhor fique calmo, não adianta esquentar a cabeça..." Interrompeu os conselhos da velhota, afinal "não tem ninguém de cabeça quente aqui!!!!".

Deixou a pasta com os documentos por um instante de lado para procurar um lenço no bolso do paletó com que pudesse enxugar o rosto. Bastou isso para um meliante fazer o serviço. "Seu filho duma p... volta aqui!! Polícia!! Pega! Pega!" Sacolejante, correu avenida abaixo, com água entrando nos sapatos atrás do pivete. Enfiou o pé num bueiro mal tapado e caiu no asfalto, atrapalhando o trânsito. Buzinas insensíveis naquela tarde chuvosa não se deram conta do seu sofrimento. Queria morrer!!! E morreu. Ataque cardíaco.
A mulher, sem nada entender, chorava e dizia que ele acordara meio atordoado, como se já soubesse que partiria. Nem percebeu a roupa especialmente preparada naquele dia incomum, afinal eram 30 anos de casados. Ela havia colocado até um bilhetinho romântico no bolso do paletó, com o perfume que ganhara dele no último Natal. Ele também não havia percebido o café da manhã, que estava pronto, sobre a bancada da cozinha, com direito ao bolo de fubá que ele tanto gostava. Nem provou, coitado! O vizinho testemunhou sua preocupação: ele devia saber... Tinha chegado ao ponto de ônibus com o olhar perdido, como se aquele fosse o último lotação de sua vida! Logo ele, que era tão calmo!
Na firma a notícia comoveu a todos. Tantos anos de relacionamento... A mocinha do 4º andar ficou perplexa, pois tudo correra normalmente não fosse a reunião do departamento que tirou alguns de circulação, daí a falta de gente para atendê-lo. Tadinho... saiu sem receber a boa notícia da promoção que tanto esperava. No cemitério, várias coroas de flores mostravam que era um cara legal e benquisto. Ninguém entendia como tinha ido parar ali, nem como se dera o ataque, no meio da avenida, com o pé enfiado no buraco. Logo ele, que era tão cuidadoso! Certamente, tinha sido um dia ruim. É, todos nós temos...

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