sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Essa tal Felicidade


É preciso ter calma quando a tempestade está chegando. Mas é preciso ser tempestade quando a calma significar a morte da alegria.

Ela estava envolta em pensamentos quando o raio iluminou o quarto. No centro da sala um vulto lhe chamou a atenção. No escuro, tateou um apoio. Pôs os pés sobre os cacos de vidro e, ainda assim, não se cortou. A casa, antigo recanto de muitas lembranças, não lhe punha medo na alma. Era janeiro. Estava quente. A brisa rapidamente transformou-se em uma grande armada no céu, com seus cavaleiros galopando as nuvens.
Naquele ano não haveria porque temer o desconhecido. Tudo era previsível. Tudo estava pronto e certo. As surpresas não eram o seu forte. Mas o imprevisível é a arte dos deuses, aquela que nenhum mortal detém. Assim como aquela tempestade cor de chumbo, vários de seus sonhos e projetos foram desabando - um a um - como se nada pudesse ser feito para deter o Destino - esse deus implacável, primo-irmão do Tempo e, no seu caso, muito amigo da Solidão.
Lídia tinha vinte e poucos anos quando descobriu que não seria feliz tão cedo. Depois da decepção com um primo que lhe jurara amor eterno e sumira no mundo pra nunca mais, passara de braços em braços  tentando encontrar de novo a tal Felicidade. Na busca, jurava ter encontrado um outro amor, daqueles de que falam os livros de Jorge Amado, com sexo e poesias ardentes. Convenceu-se então de que ali residia o melhor dos mundos. Mas o casamento, numa sexta de carnaval ensolarada, não lhe fizera tão bem quanto pensara. Teve por testemunhas apenas a sogra e uma tia, que se revezavam na tarefa de babá da filha de um ano. Além delas, apenas as marchinhas carnavalescas, os bêbados travestidos em seus bois e o som das marchinhas. Não era santa, mas também não tinha grandes pecados, por isso, sinceramente - sonhou - merecia e haveria de ser feliz. Contou pelo menos três ou quatro amantes do já desencantado marido antes de se convencer de que não havia feito boa coisa naquele cartório. E, pelo andar da carruagem e muitas noites sem dormir, não havia de ter feito boa coisa nas outras vidas que acaso tivesse vivido. Conformou-se de pagar seu quinhão. Aceitou-se escrava do Destino, à espera de que um dia o Tempo se compadecesse e lhe trouxesse a Felicidade.
Claro que não deu certo esse negócio de conformar-se. Lídia perdeu o bonde da própria vida, colocando sua identidade nas mãos de um desconhecido com o qual dormia pensando ser o marido. O estranho foi revelando-se aos poucos, com um grunhido aqui, um abandono ali, qualquer coisa sutil que lhe magoasse. E, finalmente, os tapas e agressões públicas lhe revelaram totalmente a face. Quem era aquele cara com quem trocara alianças ao som de Máscara Negra e Estrela Dalva? Demorou a descobrir que na verdade esteve vivendo um baile a fantasia, um grotesco baile de máscaras durante boa parte da sua juventude. Dois filhos e muitas humilhações depois daquele fevereiro, ela  recebeu do Destino um presente: a Liberdade finalmente a visitou.
As promessas da visitante ilustre a encantaram e ao mesmo tempo lhe meteram medo. Tudo era novo e desconhecido naquele mundo onde se podia ir e vir sem receio. Sentiu-se poderosa e frágil.
Nem bem se acostumara com os louros da nova vida, uma companheira se apresentou para que aprendesse outras lições.  A Solidão era mansa, mas tão pesada e triste quanto uma vida sem música ou bolos de aniversário. Chegar em casa não era ruim, mas a cama tinha a imensidão do mar e as noites o tamanho do espaço sideral, com todas as suas galaxias. Seu coração, acostumado a estar ocupado e dedicado a alguém, fosse quem fosse, desde a mais tenra idade, pulsava por um afago, um afeto que fosse. Foi quando, num mar de palavras e teclas de computador, o Amor chegou.
Não se apresentou de fato. Travestira-se de Amizade. Ficou por anos e anos assim, cândido e simples, como só as amizades sinceras o podem ser. A cada confidência, a cada dia de trabalho, a cada problema vencido, um laço mais forte foi se firmando. Irmãos? Claro. Para sempre. Isso ela pensava. E ele, pensava ela, também. Até que o Destino os colocou, sem qualquer máscara e desvestidos de qualquer ilusão, um frente ao outro, numa noite de setembro. Foi um susto. Não podia ser, não era pra ser. Mas foi. Não foi o tempo todo  de sons de violinos e pássaros cantando, nem havia um sapato de cristal na escadaria e um príncipe a se debruçar sobre o cavalo branco. Mas as horas passavam simples e as palavras tinham sabor de almoço em família e beijos roubados. Trabalho pesado, filhos na escola, casa com empregada, filmes com pipoca, cheiro de café fresco, burburinho pela casa, contas a pagar, domingos no sítio, soneca no sofá, pés entrelaçados na cama, briguinhas bobas e conchinha na hora de dormir.
Lídia estava sentada no chão da sala, à espera do próximo gole de vinho que automaticamente sua mão trêmula lhe servia. A Solidão, de novo, lhe olhava de frente sorrindo. O que havia acontecido entre aquele beijo quente de setembro e o frio telefonema de ontem? Em que ponto daquela história os caminhos se desencontraram? Como a taça que espatifou-se no mármore frio da sala, alguma coisa havia se quebrado dentro dela. A cama, novamente imensa, era uma ameaça ao juízo e um convite ao pranto. Lhe restaram as festas e rostos estranhos nas noites vazias. Não. Já não havia mais tempo nem espírito para carnavais juvenis ou fantasias tolas. A Felicidade definitivamente lhe pregara uma peça, tornando-a um peão no tabuleiro da Vida, onde o Destino controlava tudo. Fazer-se forte era a única saída. Mas, antes, precisava desabar como uma tempestade. Olhar de novo para o horizonte da própria história e não enxergar ninguém ao seu lado era estranho e dolorido. As lágrimas se misturaram mais uma vez ao doce-amargo do vinho. Naquele momento, com as lanças cor de prata a perfurar as cortinas e clarear seu semblante na sala vazia, chorar era o único  gesto sem esforço.
Definitivamente, olhar para trás era doloroso. Entender as próprias escolhas era quase uma tentativa de perdoar-se. Deixou que as lágrimas escorressem pelo rosto como as gotas da chuva na vidraça. E pediu ao Destino que lhe poupasse de mais um engodo. Trancaria o coração. Estava finalmente decidida a buscar a Felicidade apenas dentro de si mesma.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Boca-de-Ouro

Era preciso ter muita paciência mesmo. O dia amanhecia calmo, mas ela abria a boca só pra dizer coisas sem sentido e agitar a casa. Não havia um só dia em que Maria não colocasse fogo nas ventas de alguém. Mulher difícil estava ali.
Maria não gostava de muitos salamaleques. Andava de chinelos e bermuda, cabelos ao vento, camisetão, de preferência sem sutiã que ela "não era mulher se prender a nada". Dizia quando alguém perguntava: "se homem pode criar o bicho solto, eu também posso". E tome um balancê que, quando o vento batia, deixava a gurizada da rua toda incendiada. E ela? Nem aí. Andar de farois acessos não era problema algum para Maria.
Tinha olhos castanhos, pele azeitonada e um sorriso que poderia ser o mais comum do mundo não fosse aquele dente de ouro que o pai cismou de lhe impor ainda nos idos 12 anos, vítima da obturação malsucedida de um canal. "O doutor pode ficar com o restinho em pagamento", disse ele, entregando a aliança de casamento da falecida ao dentista esperto. Maria nunca quis trocar aquilo em respeito à mãe, com quem conviveu só até os 10, antes que a tuberculose a levasse para o céu das mães.
O brilho do caquinho de ouro no canto esquerdo da boca quando sorria, lhe rendeu o apelido de Maria Boca de Ouro. Na rua, ainda menina, aquele brilho amedrontava quem se metesse a lhe roubar a bandeira nas noites de brincadeira. "Boca de Ouro, assim não vale!", batiam o pé os menores - e os maiores - quando ela, azeda feito acerola mas de sorriso cínico, ameaçava sair no tapa. Nem precisava dizer nada. Bastava mostrar o dente. Tamanho não tinha. Mas o que faltava na altura, sobrava-lhe na valentia. E tome cascudo, soco e pontapé que "é procê deixar de ser besta".
Cresceu na fama e na cama. Aos 15 deixou-se amar pelo entregador de pão que todos os dias deixava bolo, pão doce e chocolates na sua porta "a troco de nada, só gentileza mesmo". Beraldo não era de se jogar fora. Os outros também não. Casou aos 17, de barriga. Mas o moleque não vingou. Nem o casamento.
Morto o pai, depois de uma queda na construção, o destino de Maria agora sem marido ou homem algum que lhe oferecesse atrapalho, era o que ela traçasse. Como nunca teve quem lhe ensinasse a escrever, as linhas tortas da vida a levaram de beco em beco, de tombo em tombo - e já não adiantava mais mostrar o dente pra resolver as querelas. A vida na rua não se resumia mais a pães na porta e jogos de rouba-bandeira.
Chegou num dia chuvoso de um setembro longínquo, àquele lugar estranho onde era obrigada a se lavar, comer no horário e dormir de hora marcada e luz apagada. O medo do escuro a apavorava e os primeiros raios da manhã eram um alívio. Mas ninguém entendia isso. Pentear os cabelos, Maria Boca de Ouro até penteava, mecanicamente, sentada na cama, repetindo ave-marias e glorias-ao-pai sem sentido. Mas, sutiã? Ah... isso ninguém seria capaz de fazê-la usar!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O café - Capítulo VII - O Livro de Lili

Ele chegou cedo, como de costume. Por cima dos óculos de aros finos e delicados olhou a garçonete do outro lado do balcão. O jornal, aberto na página policial, fazia o seu papel - o de interruptor de olhares. Bastava alguém passar os olhos e a página tornava-se a coisa mais interessante do mundo. Especialmente se esse alguém fosse a jovem de avental azul e olhos de amêndoa que lhe servia o café todas as manhãs.
Marcos tinha diploma de médico. Cardiologista. Dos bons, sabia ele. Mas jamais conseguira desvendar o coração de uma mulher. Especialmente o dela. Antônia não lhe dera a mínima chance. O olhar de bisturi, frio e cortante, também tinha uma precisão milimétrica: atingia sem dó nem piedade a alma do antes confiante doutor.
Todos os dias Marcos fazia o mesmo trajeto entre o apartamento na Rua da Bahia e o café simples da Rio de Janeiro. Não interessavam as conversas sobre política nem as últimas notícias da agitada vida noturna que os muitos frequentadores bafejavam logo de manhã.
Um pão de queijo com uma média açucarada teriam sido, sim, o motivo de sua assiduidade, não fosse a presença dela numa manhã de agosto. Ele se lembrava como se fosse ontem de como Antônia chegou ao trabalho. As curvas que ela tentou esconder dentro do avental ficaram à mostra quando o café quente derramou sobre a sua pasta de trabalho. "Me desculpe...o senhor pode deixar que eu cuido disso ‘jazinho’", disse ela apressada e trêmula. "É meu primeiro dia, acho que estou nervosa".
Você, que lê esse capítulo, certamente está pensando que essa história vai dar na cama entre suspiros e promessas de amor, depois de meia-dúzia de palavras e números de telefone. Acertou. Mas não completamente.
Marcos ficou encantado pela morena de olhos amêndoa e curvas exuberantes. Ele, solteirão convicto, poderia até ser sutil, mas não era o seu feitio. Foi logo direto ao pontos fracos de toda mulher, a gentileza e o bom humor: "Você não se preocupe, viu. Eram só uns papeis sem importância. Fique calma. Não vá precisar do meu atendimento logo no primeiro dia de trabalho, não é?", disse soltando seu melhor sorriso.
Claro que Antônia se derreteu toda, feito a manteiga no pão de queijo que acabara de servir. Ela tirara o avental para tentar limpar a mesa e a pasta do doutor, mas ele segurou a sua mão, apressado, não sem antes deslizar os olhos pelas curvas perfeitas daquela mulher. "Muito prazer, Marcos Coimbra".
"O prazer é meu, quer dizer, não que eu tivesse prazer em derramar café nos clientes, o senhor me desculpe...", disse ela de olhos baixos, juntando a louça na bandeja."Não tem de quê!", disse o doutor, levantando-se para ajudar.
"Antônia!". O turco gritou da portinhola do caixa, com os bigodes a foguear e o cenho mais trancado que o próprio cofre. Ela se afastou, agitada e viu o doutor, como um relâmpago, se postando ao lado do Sr. Kalil, em atitude bastante íntima. Antônia já ia se desculpando com o patrão, mas ele a interrompeu: "Antônia não disse para Kalil que era amiga de Doutor Marcos! Isso muito bom!". Os olhos do doutor enviavam uma mensagem de "por favor, diga que sim".
O desenrolar dessa narrativa qualquer mulher pode escrever, porque uma mulher entende a outra. Porém, o desfecho "...e foram felizes para sempre" no entanto não cabe aqui.
Naquela manhã de agosto, num café da rua Rio de Janeiro, as vidas de Marcos e Antônia se cruzaram como tantas outras se cruzam. Mas haviam se passado 30 anos e ele ainda não conseguira entender onde exatamente havia errado. E é muito provável que homem algum entendesse.
O jornal lhe cobria os olhos toda vez que a jovem garçonete se aproximava. O velho Kalil já não estava atrás da portinhola. Mas alguma coisa lhe dizia que Antônia ainda estava ali, com seus olhos de amêndoa e avental azul.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

"A caminhada" - O Livro de Lili - Capítulo VI

O quarto dia de caminhada foi um tanto cansativo. Eu não corria porque minhas pernas eram fracas demais para isso. Tanto tempo longe daquilo tudo... Ele olhou para trás e disse que era o peso da idade. Me irritei, embora ele não percebesse. Afinal, isso não é coisa que se diga a uma dama. Especialmente se a dama era a companheira de 15 anos de vida em comum.


Parei em frente ao paredão de pedra. Olhei na direção do vento. A chuva estava próxima. Peguei o cantil na mochila e procurei a venda na pedra de onde corria a água límpida e gélida. Delícia! Senti cada gole como se uma onda de energia tivesse entrando pelo corpo. Não resisti e entrei encostei o corpo inteiro no paredão, deixando aquele frescor todo tomar conta. As botas, encharcadas, pesariam mais. A caminhada realmente não era pra molengas, mas desde o princípio alguma coisa me dizia que eu conseguiria, mesmo com ele me dizendo o tempo todo que "aquela não era uma aventura para pessoas como eu". Daí um pensamento me ocorreu - tão gélido como a água que molhava minha garganta: "meu casamento precisa urgentemente de um banho frio como esse".

Olhei para aquela figura estranha que seguia pela trilha na mata. Não sabia mais quem era aquele cara. E, definitivamente, não sabia mais quem eu era. Foi aí que tirei as botas, coloquei os pés na estrada e segui - em sentido contrário, claro. (Lidiana Braziolli - O Livro de Lili)

"Cão de padaria" - O Livro de Lili - Capítulo V

"A temperatura estava em 27º - tempo bom, sem nuvens e amores impossíveis. O ônibus rodava pelo centro como em qualquer outro dia. Ela assentou-se na terceira cadeira do fundo. Ajeitou os fones de ouvido e abriu a janela. Depois abriu um livro.

Olhei por uns instantes para ver se ela olhava de volta. Mas acho que os fones estavam num volume muito acima do recomendado. Nem se eu gritasse ela me not...aria. Continuei observando. Tinha mãos de pianista. No dedo anelar, um anel sem qualquer valor aparente, mas que devia significar alguma coisa de muito forte. Ela nunca o tirava. Pelo menos não que eu notasse. Respirava com serenidade, mas seus pés não paravam quietos. Parecia ler algo muito importante ou interessante, porque passava as páginas com a avidez de quem engole as palavras sem mastigar. De vez em quando, parava. Olhava fixamente pela janela entreaberta. O vento nos cabelos sob o sol da manhã de outono tornava seu perfil ainda mais bonito. Apertava os lábios, como que saboreando os próprios pensamentos. E eu, daqui da minha quietude, digeria cada movimento, sem poder tocá-la. Foi aí que soube exatamente como se sente um cão que observa o frango assando dentro da padaria."
*ilustração: Juliana Guido/internet

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Livro de Lili



Fim de férias. Tô de volta. Pode dar piti, que eu assumo: deixei o barco correr durante um mês inteirinho. O que não significa que euzinha estava de bobeira. Nesse meio tempo, tb dei um tempo noutras coisas, passei aperto, chorei as pitangas, rodei um mundo, ri muito,rodei a baiana, pintei a casa, beijei moooooito, quebrei a cara, juntei os cacos, comi, rezei e amei. Daí, virei o ano. 2012 chega trazendo uma novidade: está nascendo, de parto normal, mas bem devagarinho, O Livro de Lili.
Como em todo parto, há dor. Mas no fim é uma alegria danada. A cada capítulo,alguns ais e uis. Mas é lá no Facebook, um a cada dois ou três dias. A cada três capítulos, eles vêm pra cá. Então, aqui vão os três primeiros. Boa leitura, queridos e queridas.

O LIVRO DE LILI
(Uma comédia de erros e acertos que são,foram ou ainda serão cometidos) 


CAPÍTULO 1 - Das novidades a que temos direito

1º de janeiro. Tô querendo novidade na minha vida. Tenho pela frente ainda 360 dias novinhos pra viver. Optei por vivê-los da melhor maneira. Prefiro ver o copo meio cheio, sabe? Que me chamem de piegas, azar! Dizem que ser feliz no Face é brega ou é doença. Daqui a pouco vão dizer que rir faz mal. Tô nem aí. Eu quero a novidade, mas com um toque de nostalgia (pra lembrar os momentos bons, tipo aquela música, aquele lugar, aquele amasso, sei lá, algo que me marcou pela energia boa que deixou na memória). Mas se vierem pra mim com essa história de "padrão de comportamento", acho que vou desconversar e fazer cara de paisagem. Não vou discutir, mas juro que vou me fingir de besta pra não brigar. Li no livro da Danuza Leão (ótimo) que o Humphrey Bogart dizia que com três drinques podemos mudar uma história. Então fica decretado: tomo três taças de um bom vinho e deixo a tristeza e o aborrecimento acharem que eu acredito neles.

CAPÍTULO 2. Da coragem que todos queremos ter, mas...

Seguinte: vinho é bom, falar de amenidades, jogar conversa fora, quebrar a rotina, tudo isso é bom demais. Principalmente se você está naquela "mais ou menos", que nem dá nem desce, sabe? Então. Bote pra quebrar, minha filha. Arrisque-se pelo menos uma vez! E daí se vão dizer que você é a mais pirada da família, aquela cujo nome não deve ser pronunciado (em público, né, porque na hora do pega pra capar, é do seu nome que eles vão se lembrar). Olha aqui: tomar decisões envolve muita coragem. E soltar a franga também. Por isso que eu digo que os gays que saem do armário merecem todos um troféu e uma passagem para o paraíso. Isso vale também pra quem simplesmente assume o que é - seja lá o que se é. Num tempo de tantos mascarados, encontrar um de cara limpa é bom demais, gente! Pois é. Mas também não vale armar barraco. Soltar a franga você pode e deve - desde que não solte em cima do pobre coitado que está do seu lado vendo a banda passar. Fazer o que acha certo independente do que achem de você, não quer dizer colocar o mundo na berlinda. Peraí, que o santo é de barro. Não dou conselho. Aliás, isso aqui passa longe de conselho. Só estou falando o que eu penso e que tenho resolvido fazer depois que os meus 40 e poucos me bateram à porta. Uma vez alguém disse (não me peçam pra dizer quem que eu não vou lembrar) que depois dos 70 todos temos direito a dizer e fazer o que pensa sem ser julgado. Eu resolvi adiantar um pouco isso aí. Afinal, o mundo mudou e nós com eles. E eu não to a fim de esperar os 70 pra ser eu mesma, valeu?

CaPítulo 3.Do medo e do último gole
Se era pra ser difícil, então tinha de ser bom. Foi assim que resolvi enfrentar aquele medo, aquele que normalmente faz a gente correr, dar dor de barriga, suar frio, passar um perrengue, sabe? Então escolhi as armas e fui à luta. Ele estava lá, do outro lado, me olhando com aqueles olhos de lobo mau e eu querendo pular o muro e virar a esquina. 
Contei até 10 baixinho, deixando a sensação de impotência e a imobilidade escorrerem pela goela, junto com o uísque que ainda restava no fundo da garrafa. Vamos combinar que ninguém no seu estado normal daria conta de um recado como aquele de cara limpa. Pensei com meus botões imaginários: se não for agora, não vai ser nunca. Enquanto isso, ele, olhos vidrados, vinha na minha direção, caminhando lentamente. Foi chegando, chegando, chegando. Em certo momento, tão perto que senti seu hálito. Meu coração batia na boca. Meus lábios formigavam, as mãos dormentes e as pernas bambeavam. Era o medo. Foi então que ele avançou sobre mim...e me beijou.