sexta-feira, 13 de abril de 2012

O café - Capítulo VII - O Livro de Lili

Ele chegou cedo, como de costume. Por cima dos óculos de aros finos e delicados olhou a garçonete do outro lado do balcão. O jornal, aberto na página policial, fazia o seu papel - o de interruptor de olhares. Bastava alguém passar os olhos e a página tornava-se a coisa mais interessante do mundo. Especialmente se esse alguém fosse a jovem de avental azul e olhos de amêndoa que lhe servia o café todas as manhãs.
Marcos tinha diploma de médico. Cardiologista. Dos bons, sabia ele. Mas jamais conseguira desvendar o coração de uma mulher. Especialmente o dela. Antônia não lhe dera a mínima chance. O olhar de bisturi, frio e cortante, também tinha uma precisão milimétrica: atingia sem dó nem piedade a alma do antes confiante doutor.
Todos os dias Marcos fazia o mesmo trajeto entre o apartamento na Rua da Bahia e o café simples da Rio de Janeiro. Não interessavam as conversas sobre política nem as últimas notícias da agitada vida noturna que os muitos frequentadores bafejavam logo de manhã.
Um pão de queijo com uma média açucarada teriam sido, sim, o motivo de sua assiduidade, não fosse a presença dela numa manhã de agosto. Ele se lembrava como se fosse ontem de como Antônia chegou ao trabalho. As curvas que ela tentou esconder dentro do avental ficaram à mostra quando o café quente derramou sobre a sua pasta de trabalho. "Me desculpe...o senhor pode deixar que eu cuido disso ‘jazinho’", disse ela apressada e trêmula. "É meu primeiro dia, acho que estou nervosa".
Você, que lê esse capítulo, certamente está pensando que essa história vai dar na cama entre suspiros e promessas de amor, depois de meia-dúzia de palavras e números de telefone. Acertou. Mas não completamente.
Marcos ficou encantado pela morena de olhos amêndoa e curvas exuberantes. Ele, solteirão convicto, poderia até ser sutil, mas não era o seu feitio. Foi logo direto ao pontos fracos de toda mulher, a gentileza e o bom humor: "Você não se preocupe, viu. Eram só uns papeis sem importância. Fique calma. Não vá precisar do meu atendimento logo no primeiro dia de trabalho, não é?", disse soltando seu melhor sorriso.
Claro que Antônia se derreteu toda, feito a manteiga no pão de queijo que acabara de servir. Ela tirara o avental para tentar limpar a mesa e a pasta do doutor, mas ele segurou a sua mão, apressado, não sem antes deslizar os olhos pelas curvas perfeitas daquela mulher. "Muito prazer, Marcos Coimbra".
"O prazer é meu, quer dizer, não que eu tivesse prazer em derramar café nos clientes, o senhor me desculpe...", disse ela de olhos baixos, juntando a louça na bandeja."Não tem de quê!", disse o doutor, levantando-se para ajudar.
"Antônia!". O turco gritou da portinhola do caixa, com os bigodes a foguear e o cenho mais trancado que o próprio cofre. Ela se afastou, agitada e viu o doutor, como um relâmpago, se postando ao lado do Sr. Kalil, em atitude bastante íntima. Antônia já ia se desculpando com o patrão, mas ele a interrompeu: "Antônia não disse para Kalil que era amiga de Doutor Marcos! Isso muito bom!". Os olhos do doutor enviavam uma mensagem de "por favor, diga que sim".
O desenrolar dessa narrativa qualquer mulher pode escrever, porque uma mulher entende a outra. Porém, o desfecho "...e foram felizes para sempre" no entanto não cabe aqui.
Naquela manhã de agosto, num café da rua Rio de Janeiro, as vidas de Marcos e Antônia se cruzaram como tantas outras se cruzam. Mas haviam se passado 30 anos e ele ainda não conseguira entender onde exatamente havia errado. E é muito provável que homem algum entendesse.
O jornal lhe cobria os olhos toda vez que a jovem garçonete se aproximava. O velho Kalil já não estava atrás da portinhola. Mas alguma coisa lhe dizia que Antônia ainda estava ali, com seus olhos de amêndoa e avental azul.

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