quinta-feira, 19 de abril de 2012

Boca-de-Ouro

Era preciso ter muita paciência mesmo. O dia amanhecia calmo, mas ela abria a boca só pra dizer coisas sem sentido e agitar a casa. Não havia um só dia em que Maria não colocasse fogo nas ventas de alguém. Mulher difícil estava ali.
Maria não gostava de muitos salamaleques. Andava de chinelos e bermuda, cabelos ao vento, camisetão, de preferência sem sutiã que ela "não era mulher se prender a nada". Dizia quando alguém perguntava: "se homem pode criar o bicho solto, eu também posso". E tome um balancê que, quando o vento batia, deixava a gurizada da rua toda incendiada. E ela? Nem aí. Andar de farois acessos não era problema algum para Maria.
Tinha olhos castanhos, pele azeitonada e um sorriso que poderia ser o mais comum do mundo não fosse aquele dente de ouro que o pai cismou de lhe impor ainda nos idos 12 anos, vítima da obturação malsucedida de um canal. "O doutor pode ficar com o restinho em pagamento", disse ele, entregando a aliança de casamento da falecida ao dentista esperto. Maria nunca quis trocar aquilo em respeito à mãe, com quem conviveu só até os 10, antes que a tuberculose a levasse para o céu das mães.
O brilho do caquinho de ouro no canto esquerdo da boca quando sorria, lhe rendeu o apelido de Maria Boca de Ouro. Na rua, ainda menina, aquele brilho amedrontava quem se metesse a lhe roubar a bandeira nas noites de brincadeira. "Boca de Ouro, assim não vale!", batiam o pé os menores - e os maiores - quando ela, azeda feito acerola mas de sorriso cínico, ameaçava sair no tapa. Nem precisava dizer nada. Bastava mostrar o dente. Tamanho não tinha. Mas o que faltava na altura, sobrava-lhe na valentia. E tome cascudo, soco e pontapé que "é procê deixar de ser besta".
Cresceu na fama e na cama. Aos 15 deixou-se amar pelo entregador de pão que todos os dias deixava bolo, pão doce e chocolates na sua porta "a troco de nada, só gentileza mesmo". Beraldo não era de se jogar fora. Os outros também não. Casou aos 17, de barriga. Mas o moleque não vingou. Nem o casamento.
Morto o pai, depois de uma queda na construção, o destino de Maria agora sem marido ou homem algum que lhe oferecesse atrapalho, era o que ela traçasse. Como nunca teve quem lhe ensinasse a escrever, as linhas tortas da vida a levaram de beco em beco, de tombo em tombo - e já não adiantava mais mostrar o dente pra resolver as querelas. A vida na rua não se resumia mais a pães na porta e jogos de rouba-bandeira.
Chegou num dia chuvoso de um setembro longínquo, àquele lugar estranho onde era obrigada a se lavar, comer no horário e dormir de hora marcada e luz apagada. O medo do escuro a apavorava e os primeiros raios da manhã eram um alívio. Mas ninguém entendia isso. Pentear os cabelos, Maria Boca de Ouro até penteava, mecanicamente, sentada na cama, repetindo ave-marias e glorias-ao-pai sem sentido. Mas, sutiã? Ah... isso ninguém seria capaz de fazê-la usar!

Um comentário:

Jessica disse...

Gente, mas ficou muito bom mesmo. Parabens!