"A temperatura estava em 27º - tempo bom, sem nuvens e amores impossíveis. O ônibus rodava pelo centro como em qualquer outro dia. Ela assentou-se na terceira cadeira do fundo. Ajeitou os fones de ouvido e abriu a janela. Depois abriu um livro.
Olhei por uns instantes para ver se ela olhava de volta. Mas acho que os fones estavam num volume muito acima do recomendado. Nem se eu gritasse ela me not...aria. Continuei observando. Tinha mãos de pianista. No dedo anelar, um anel sem qualquer valor aparente, mas que devia significar alguma coisa de muito forte. Ela nunca o tirava. Pelo menos não que eu notasse. Respirava com serenidade, mas seus pés não paravam quietos. Parecia ler algo muito importante ou interessante, porque passava as páginas com a avidez de quem engole as palavras sem mastigar. De vez em quando, parava. Olhava fixamente pela janela entreaberta. O vento nos cabelos sob o sol da manhã de outono tornava seu perfil ainda mais bonito. Apertava os lábios, como que saboreando os próprios pensamentos. E eu, daqui da minha quietude, digeria cada movimento, sem poder tocá-la. Foi aí que soube exatamente como se sente um cão que observa o frango assando dentro da padaria."
*ilustração: Juliana Guido/internet
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