Xicó tinha toda a razão do mundo. Tem coisa que a gente finge que sabe. Sabe aquela frase? Fingir de bobo pra viver? Então. Tem dias em que a gente passa quase o dia todo assim, se fingindo de besta pra levar a vida. E nessa eu acabo de me lembrar do relato do Zeca, sábio das rodas de samba, que manda deixar a vida levar a gente.
Outro dia, atravessando a rua, vi uma velhota de bengala e cabelos brancos seguindo pela pista, entremeio aos carros, indiferente ao sinal que piscava dizendo que o tempo de pedestre - parco tempo aliás - estava no fim do fim. Ela nem aí. Continuou no ritmo, levando sua sacolinha - sacolinha não, ecobag please - rua afora, rumo ao outro lado da rua. A gente, do lado de cá, aflita, e Dona Josefina - este era o nome dela, toda calma, com a mãozinha em riste, como se fosse o próprio guarda de trânsito e se dar passagem com toda a autoridade de seus cabelos cor de neve. Taí uma hora em que ser velho neste país compensa. Buzinaram, claro. Mas ninguém que se atrevesse a passar por cima que seria linchado, no mínimo. Josefina nem arfou. Arrumou o coquete do outro lado, ajeitou a ecobag e foi-se para a aula de yoga com a paz do próprio Crishna, não sem antes fazer um aquecimento leve e acelerar - isso mesmo - numa corridinha tipo 1-2-1-2, no meio do Parque Ecológico da Pampulha.
Vez por outra me deparo com gente assim, que sem ferir sucetibilidades, consegue o que quer. Meu amigo Newtinho, que escreve quando em vez por estas plagas, me contou uma de um senhor outro dia. Diz-se de um antigo vereador curvelano ou coisa que o valha, cujo nome não me ocorre agora, que era um detentor desse dom de fazer-se de besta para sobreviver. E com que esmero. Tanto que bem mereceria o apelido de Xicó, o famoso personagem de Ariano Suassuna, no magistral Auto da Compadecida.
O tal que não tinha nem pretendia ter carteira de motorista, já diriga fazia tempos sua belina velha (acho que era esse carro mesmo). Pois então. Um dia, foi pego numa blitz. Mão apontando para o acostamento, o guarda aproximou-se da janela. "Seus documentos, por favor". Não se tratando de conhecido, um espanto pois no interior todos se conhecem, o vereador logo olhou nos olhos do guarda, com as feições de fazer inveja ao Gato-de-Botas do Shrek: "quero primeiramente dizer ao senhor que é para mim uma honra sem tamanho, ser parado por tão importante autoridade! Saiba o senhor que isto não é para qualquer um!". E o guarda: "Obrigado, mas gostaria de ver os documentos". "Sim, respondeu, mas o senhor fique sabendo que a estas horas, ser parado assim, com essa distinção toda, por uma autoridade da sua envergadura, me faz ter a certeza de que nossa cidade está em boas mãos e que posso seguir tranquilo, pois a segurança pública está indo de bem a melhor! O senhor não está aqui abanando mão na beira da estrada à toa não! Está no estrito cumprimento do seu dever, isto sim! E que honra par amim testemunhar este labor". E o guarda: "Sim, meu senhor, mas o senhor pode me mostrar os documentos do veículo?".
Qualquer um teria desistido, mas a qualidade de fazer-se de bobo era maior no vereador em questão. "Sim, claro, eu poderia lhe dizer senhor guarda, se fosse educado para tal despropósito, que os esqueci em casa. Mas este não é o caso. Isto porque fui educado na mais alta confiança de meus pais, que descansem em paz! Fui educado sob a guarda da Santa Madre Igreja, dos princípios que não me permitem mentir. Acaso o senhor gostaria ou acharia correto que eu lhe mentisse? Acaso eu seria verdadeiramente honesto e digno de sua presença se eu mentisse ao senhor, uma autoridade tão distinta?". E o guarda: "Claro que não, vereador. Mesmo porque sei que o senhor não mente, não é?". "Pois então, meu filho, a verdade nos liberta! E eu não lhe cobrirei com o véu da mentira. Pois que não tenho os documentos do veículo nem aqui nem em parte alguma". E o guarda: "Então ficarei satisfeito, senhor, se me mostrar sua habilitação". No que se seguiu: "E assim segue minha epopeia, meu caro. Porque a verdade deve continuar à tona. Não serei eu a manchar esta farda com uma peça, inventando carminholas para expor-lhe ao ridículo mais tarde. Não! Terei a nobreza que lhe fará jus, que faz jus aos meus pais, à minha fé, à esta cidade que honro na Câmara Municipal. Não serei eu a mentir-lhe dizendo que esqueci em casa. Eu poderia dizer: esqueci na mesa da sala quando saí, ou esqueci na venda do João, ou esqueci no bolso do meu outro paletó, ou coisa assim. Mas não, meu caro representante da Lei! Sou deveras devoto da verdade para escondê-la sob o manto negro da mentira. Acaso o senhor gostaria disso? Acaso aprovaria a mentira? Estaria eu sendo correto e demonstrando honestidade, mentido ao senhor? Não considera ser mais bonito de minha parte ser-lhe fiel ao fato de que realmente não tenho habilitação e que me ponho a serviço do povo correndo riscos?"
Pois no fim das contas, o tal venceu. Com a verdade, claro. Mas com a verdade a seu modo.
Fingiu-se de besta como tantos de nós, a grosso modo o fazemos todos os dias. Xicós e vereadores, senadores, homens comuns e nem tão comuns. Todos pesados na mesma balança da esperteza. Pois é...
Um comentário:
Textos muito bem escrito. Parabéns!!
Fico imaginando o Xicó contando alguma história de corrida dele. Imagine a cena.
Boas Corridas!!
Alessandro
http://blog42195.blogspot.com/
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