sexta-feira, 28 de maio de 2010

A difícil arte de viver e morrer

Ele era um homem comum. Tinha esposa, filhos, uma casinha no interior, em bairro tradicional de trabalhadores. Desde jovem gostou da coisa pública. Ainda muito novo resolveu ser jornalista. Voz bonita, fazia anúncios em carros de som volante até que foi parar na primeira rádio da cidade, com um programa só seu. Foram tempos de glória.
Sua voz possante acabou marcando os principais comícios e shows não apenas no município, mas em outros da região. Tinha a fala recortada, bem ao gosto popular, própria de quem gostava de passar emoção e suspense. Fundou um jornal que passou a ser também ganha-pão.  Tanta dedicação à comunicação e muitos pitacos na política, renderam-lhe, com o devido talento, um cargo de assessor do melhor prefeito que a cidade já tivera.
Com os anos, resolveu livrar-se de tudo que o incomodara: gravatas, sapatos apertados, gente chata, emprego chato. Nas noites frias de julho, gostava de usar o chapéu de feltro ou brim e, de vez em quando, um cachecol que o faziam lembrar de pessoas que admirava, transportando-o certamente para outras cenas, talvez de filmes que assistira no Cine Virgínia nos bons tempos. No mais, queria apenas as tardes de cerveja no boteco do compadre, perto de casa, onde batia ponto para por as conversas em dia. Só não conseguiu livrar-se do cigarro, companheiro de todas as horas. Fumava até três maços por dia, às vezes um atrás do outro quando a coisa apertava.
Teimoso com quase tudo nessa vida, dizia assim: "eu não jogo, não danço, não saio, não viajo, não tenho nenhuma despesa que não seja meu cigarrinho e minha cervejinha. Se largo isso, que gosto vou ter na vida?" E lá ia, de chapéu e cigarro em punho, máquina fotográfica pendurada no pescoço, passos tranquilos - às vezes até demais para o momento - clicar e anunciar mais um evento.
Pois então a vida, que ele queria tão simples, lhe pregou uma peça complicada, um câncer, que ontem, 27 de maio, lhe tirou da convivência da família e dos amigos, para nunca mais, com pouco mais de 60 anos.
Fico pensando, diante da morte desse colega de profissão, de nome Geraldo Sales, curvelano gente boa, se não estamos nos contentando com coisas que nos fazem mal ou que remediam a nossa situação de pequenez,  com a desculpa de não haver alternativas. Geraldo podia ter tido outra vida, outra sorte. Outra morte. Ou não. Quem é que sabe?
Podia ter escolhido ser outra coisa. Quem sabe dentista? Corretor de imóveis? Comerciante? Arquiteto? Marinheiro lá no Rio de Janeiro? Conhecer o mundo em viagens por aí?  Não fumar. Não correr riscos. Jogar futebol. Morar na praia. Comprar um barco. Seria feliz? Quem sabe as opções que teve?
Claro que não é possível prever como vamos morrer. Mas me pergunto se é mesmo possível escolher como viver, independentemente de condições financeiras, do lugar onde nascemos ou das pessoas de quem gostamos pensando em postergar o inevitável e aumentar as chances de um final de vida menos doloroso.
Creio que difícil mesmo é fazer as escolhas certas, porque como disse um poeta por aí, quase tudo que é gostoso nessa vida é  politicamente incorreto, é anormal, é imoral ou engorda. Geraldo, com quem convivi por sete anos como colega de profissão em Curvelo, não estava disposto a pagar o preço de uma vida "sem gosto". Deixou sua marca. E vai fazer falta.

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