quarta-feira, 9 de setembro de 2009

As mentiras da minha avó


É preicso ter paciência. Minha avó dizia ao vô Braziolli que suas tentativas de nos fazer entender as histórias, anedotas e charadas que contava todos as tardes eram inúteis. Minha nona não sabia que estava errada. Nas suas contas de ave-marias, repetidas como mantras religiosamente às 20h, mesmo a nosso contragosto, nos privando da novela em preto e branco, não havia lugar para outras crenças e fábulas. Sem saber, praticava conosco o mesmo beabá do vovô, só que no lugar das lendas e seus personagens havia o Menino-Jesus, o Espírito Santo e a Salve-Rainha. Aprendemos de tanto ouvi-la repetir. Assimilamos, absorvemos e ainda hoje eu sonho com sua voz e sinto o cheio do pó-de-arroz que ela passava no meu rosto toda manhã de domingo antes de irmos à missa das oito.
As férias na casa dos meus avós eram uma lição de paciência e vida. Os rituais se repetiam e nós, pequenos, cumpríamos tudo. Do nosso jeito, mas cumpríamos. No quintal de muitas ervas e flores eu me sentia a própria Virginia McMath, mais conhecida como Ginger Rogers. Cantava, dançava, interpretava todos os papéis que minha imaginação pedia. Nada era impossível.
Havia uma árvore para cada um. A goiabeira vermelha era a mais disputada. Brincávamos de esconder atrás das roseiras e pés de dália, ou entre as moitas de erva-cidreira, arruda e funcho. Saíamos de dentro delas - hoje eu creio - já bentos e sarados de qualquer mal, tal era a alegria que nos nutria. Mas minha avó insistia em colocar umas folhinhas atrás das nossas orelhas e ministrar o chá de funcho com hortelã em jejum toda manhã "para combater os vermes e abrir o apetite". Adoçado com rapadura e servido quentinho, não era ruim. O ruim era esperar uma hora antes de poder provar o prato de mentiras - o biscoito frito que ela fazia como ninguém.
Movidos pela vontade de provar essa iguaria, deixávamos a goiabeira, rezávamos o terço e dormíamos mais cedo de luzes apagadas sem reclamar. O escuro do quarto me dava falta de ar. A sensação me atemoriza até hoje. Fecho os olhos. Respiro fundo. Finjo que tenho 13 anos e estou na casa da minha avó. Lembro o cheiro do chá. Penso nas mentiras.
Em alguns minutos tenho minha paz de volta. De manhã fico pensando nas aulas de dança que não fiz e no amor que deixei escapar enquanto sonhava com uma carreira. Penso nas acrobacias que tenho de fazer hoje, pra conseguir que meus filhos tenham a mesma sensação que situações tão simples me proporcionaram, enquanto busco a tão sonhada e prometida independência financeira. Sinto que me falta paciência.
Minha querida avó não sabia, mas de mentira em mentira me ensinou muitas verdades dessa vida. E o vovô... devo a ele, eu sei, a boa memória, a concentração, o amor pelos livros e pela leitura, o gosto por uma boa prosa e a mania de contar histórias para meus filhos.

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