É preciso ter calma quando a tempestade está chegando. Mas é preciso ser tempestade quando a calma significar a morte da alegria.
Ela estava envolta em pensamentos quando o raio iluminou o quarto. No centro da sala um vulto lhe chamou a atenção. No escuro, tateou um apoio. Pôs os pés sobre os cacos de vidro e, ainda assim, não se cortou. A casa, antigo recanto de muitas lembranças, não lhe punha medo na alma. Era janeiro. Estava quente. A brisa rapidamente transformou-se em uma grande armada no céu, com seus cavaleiros galopando as nuvens.
Naquele ano não haveria porque temer o desconhecido. Tudo era previsível. Tudo estava pronto e certo. As surpresas não eram o seu forte. Mas o imprevisível é a arte dos deuses, aquela que nenhum mortal detém. Assim como aquela tempestade cor de chumbo, vários de seus sonhos e projetos foram desabando - um a um - como se nada pudesse ser feito para deter o Destino - esse deus implacável, primo-irmão do Tempo e, no seu caso, muito amigo da Solidão.
Lídia tinha vinte e poucos anos quando descobriu que não seria feliz tão cedo. Depois da decepção com um primo que lhe jurara amor eterno e sumira no mundo pra nunca mais, passara de braços em braços tentando encontrar de novo a tal Felicidade. Na busca, jurava ter encontrado um outro amor, daqueles de que falam os livros de Jorge Amado, com sexo e poesias ardentes. Convenceu-se então de que ali residia o melhor dos mundos. Mas o casamento, numa sexta de carnaval ensolarada, não lhe fizera tão bem quanto pensara. Teve por testemunhas apenas a sogra e uma tia, que se revezavam na tarefa de babá da filha de um ano. Além delas, apenas as marchinhas carnavalescas, os bêbados travestidos em seus bois e o som das marchinhas. Não era santa, mas também não tinha grandes pecados, por isso, sinceramente - sonhou - merecia e haveria de ser feliz. Contou pelo menos três ou quatro amantes do já desencantado marido antes de se convencer de que não havia feito boa coisa naquele cartório. E, pelo andar da carruagem e muitas noites sem dormir, não havia de ter feito boa coisa nas outras vidas que acaso tivesse vivido. Conformou-se de pagar seu quinhão. Aceitou-se escrava do Destino, à espera de que um dia o Tempo se compadecesse e lhe trouxesse a Felicidade.
Claro que não deu certo esse negócio de conformar-se. Lídia perdeu o bonde da própria vida, colocando sua identidade nas mãos de um desconhecido com o qual dormia pensando ser o marido. O estranho foi revelando-se aos poucos, com um grunhido aqui, um abandono ali, qualquer coisa sutil que lhe magoasse. E, finalmente, os tapas e agressões públicas lhe revelaram totalmente a face. Quem era aquele cara com quem trocara alianças ao som de Máscara Negra e Estrela Dalva? Demorou a descobrir que na verdade esteve vivendo um baile a fantasia, um grotesco baile de máscaras durante boa parte da sua juventude. Dois filhos e muitas humilhações depois daquele fevereiro, ela recebeu do Destino um presente: a Liberdade finalmente a visitou.
As promessas da visitante ilustre a encantaram e ao mesmo tempo lhe meteram medo. Tudo era novo e desconhecido naquele mundo onde se podia ir e vir sem receio. Sentiu-se poderosa e frágil.
Nem bem se acostumara com os louros da nova vida, uma companheira se apresentou para que aprendesse outras lições. A Solidão era mansa, mas tão pesada e triste quanto uma vida sem música ou bolos de aniversário. Chegar em casa não era ruim, mas a cama tinha a imensidão do mar e as noites o tamanho do espaço sideral, com todas as suas galaxias. Seu coração, acostumado a estar ocupado e dedicado a alguém, fosse quem fosse, desde a mais tenra idade, pulsava por um afago, um afeto que fosse. Foi quando, num mar de palavras e teclas de computador, o Amor chegou.
Não se apresentou de fato. Travestira-se de Amizade. Ficou por anos e anos assim, cândido e simples, como só as amizades sinceras o podem ser. A cada confidência, a cada dia de trabalho, a cada problema vencido, um laço mais forte foi se firmando. Irmãos? Claro. Para sempre. Isso ela pensava. E ele, pensava ela, também. Até que o Destino os colocou, sem qualquer máscara e desvestidos de qualquer ilusão, um frente ao outro, numa noite de setembro. Foi um susto. Não podia ser, não era pra ser. Mas foi. Não foi o tempo todo de sons de violinos e pássaros cantando, nem havia um sapato de cristal na escadaria e um príncipe a se debruçar sobre o cavalo branco. Mas as horas passavam simples e as palavras tinham sabor de almoço em família e beijos roubados. Trabalho pesado, filhos na escola, casa com empregada, filmes com pipoca, cheiro de café fresco, burburinho pela casa, contas a pagar, domingos no sítio, soneca no sofá, pés entrelaçados na cama, briguinhas bobas e conchinha na hora de dormir.
Lídia estava sentada no chão da sala, à espera do próximo gole de vinho que automaticamente sua mão trêmula lhe servia. A Solidão, de novo, lhe olhava de frente sorrindo. O que havia acontecido entre aquele beijo quente de setembro e o frio telefonema de ontem? Em que ponto daquela história os caminhos se desencontraram? Como a taça que espatifou-se no mármore frio da sala, alguma coisa havia se quebrado dentro dela. A cama, novamente imensa, era uma ameaça ao juízo e um convite ao pranto. Lhe restaram as festas e rostos estranhos nas noites vazias. Não. Já não havia mais tempo nem espírito para carnavais juvenis ou fantasias tolas. A Felicidade definitivamente lhe pregara uma peça, tornando-a um peão no tabuleiro da Vida, onde o Destino controlava tudo. Fazer-se forte era a única saída. Mas, antes, precisava desabar como uma tempestade. Olhar de novo para o horizonte da própria história e não enxergar ninguém ao seu lado era estranho e dolorido. As lágrimas se misturaram mais uma vez ao doce-amargo do vinho. Naquele momento, com as lanças cor de prata a perfurar as cortinas e clarear seu semblante na sala vazia, chorar era o único gesto sem esforço.
Definitivamente, olhar para trás era doloroso. Entender as próprias escolhas era quase uma tentativa de perdoar-se. Deixou que as lágrimas escorressem pelo rosto como as gotas da chuva na vidraça. E pediu ao Destino que lhe poupasse de mais um engodo. Trancaria o coração. Estava finalmente decidida a buscar a Felicidade apenas dentro de si mesma.
2 comentários:
Oi Lili!
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Beijins,
Andrea
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